20.6.11

AS QUESTÕES DO FINANCIAMENTO E DA FIXAÇÃO DE MÉDICOS NO SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE BRASILEIRO


Para o efetivo funcionamento do sistema público de saúde no Brasil, deve haver um corajoso enfrentamento ao sistema privado, devido ao choque de interesses existente entre essas duas esferas, que disputam os médicos, causando uma desvantagem perversa para o sistema público e consequentemente para a grande maioria da população.

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O debate sobre o financiamento da saúde pública no Brasil é algo que vem sendo levantado há muito tempo. Não é raro vermos na grande mídia algum “especialista” defender a tese de que a Saúde já tem dinheiro suficiente, e que o problema se resumiria à questão do gerenciamento. Porém, o orçamento público para a saúde no Brasil, nos três níveis de Governo, soma algo da ordem de R$ 85 bilhões, o que, apesar de aparentar um valor muito alto, não passa muito de meros R$ 450 anuais por habitante. Aqui a análise torna-se muito simples, será se algum plano privado de saúde conseguiria operar com qualidade com um valor de R$ 450 anuais por cliente (pouco mais de 35 reais mensais)? Algum convênio cobra somente esse valor? Claro que não! Mesmo excluindo da conta os quase 60 milhões de brasileiros que possuem algum tipo de seguro privado de saúde, o valor ainda não chega a R$ 650 anuais per-capita.


Mas claro que este valor de R$ 650 anuais por habitante não é o mais adequado para este tipo de análise, e sim os R$ 450, pois devemos lembrar que o SUS ainda precisa dar conta de uma série de serviços que nenhum plano privado de saúde executa, como as campanhas de vacinação que atingem todo o território nacional, os milhares de transplantes feitos todos os anos no país (nenhum hospital ou plano de saúde privado faz transplantes de coração no Brasil), as vigilâncias sanitárias que que atuam em todo o país e por aí vai. Logo, vê-se que o volume de recursos destinados à saúde no Brasil ainda é muito pequeno.


Mas, o que pretendo tratar aqui é principalmente sobre a quantidade de médicos e, mais precisamente, sobre a fixação desses profissionais de saúde no serviço público. Com quase 300 mil médicos em atividade atualmente, o Brasil conta com cerca de 1,6 médicos para cada mil habitantes. Há quem diga que esse número seja suficiente, já que segundo a OMS, o mínimo que um país deve possuir é 1 médico para cada 1000 pessoas. Porém, o grande problema é que a maioria desses médicos dedicam grande parte do seu tempo de trabalho a atividades privadas, seja em atendimentos particulares, seja em atendimentos através de convênios ou planos de saúde. Isso sem falar na gritante distorção existente na distribuição geográfica desses profissionais. Enquanto em grandes centros urbanos, como a cidade de São Paulo, o número de médicos passa de 3 para cada 1000 pessoas, em alguns pontos das regiões Norte e do Nordeste esse número é menor do que 1 para cada 1000 habitantes.


Conforme dados publicados pelo Conselho Federal de Medicina, em 2004 o Brasil possuía cerca de 235 mil médicos, sendo que desses, 69,7% trabalhavam no setor público, 53,8% no setor privado (hospitais ou clínicas) e 67% atendiam em consultórios particulares. É claro que, se atualizarmos esses dados para 2011, as alterações seriam bem pequenas. Mas enfim, fica claro no resultado desse estudo realizado pelo CFM que, apesar de cerca de 70% dos médicos trabalharem no setor público, quase todos também trabalham no setor privado, seja em hospitais, clínicas ou consultórios. Isso significa que quase a totalidade dos médicos que atua no setor público também atua no setor privado. A consequência disso é precarização dos atendimento médicos, principalmente na rede pública, devido à sobrecarga de trabalho desses profissionais. Uma boa parte dos médicos (e eu arriscaria dizer que quase todos) não cumpre a sua jornada integral de trabalho no serviço público, principalmente aqueles que são contratados para jornadas de 40 horas semanais.


Refazendo as contas, o Brasil tem 1,6 médicos por 1000 habitantes. Se 70% desses trabalham na rede pública, esse número já cai para 1,1. Mas, dentre estes, muitos ainda dividem o seu tempo de trabalho com a atuação na rede privada. E claro, sabemos que não é uma divisão muito justa, sendo que a atuação na rede pública quase sempre é prejudicada. Eu não tenho o número, mas me arrisco a dizer que a quantidade de médicos com dedicação exclusiva ao serviço público, para cada grupo de 1000 habitantes no Brasil, é praticamente igual a zero!


Como então fazer com que o serviço público de saúde funcione bem em nosso país? A regulamentação da Emenda Constitucional nº 29 é algo que já passou da hora de ser feito; formar mais médicos, aumentar o número de escolas de medicina, é algo igualmente necessário, e o Governo Federal tem demonstrado que também concorda com esta ideia; outro avanço, que está em estudo no Governo é fazer com que os médicos formados pelo sistema FIES se dediquem ao SUS enquanto estiverem pagando o financiamento da sua faculdade, em troca do perdão da dívida. Mas aqui tem que obrigar que eles se dediquem integralmente ao SUS, que sejam proibidos de atenderem na rede privada, se não for assim, não resolve muita coisa.


Há ainda os que dizem que o problema da fixação dos profissionais na rede pública e o problema das distorções geográficas na distribuição dos médicos é devido ao fato de o Poder Público pagar pouco a esses profissionais. Mas há municípios que chegam a pagar mais de R$ 10 mil ao médico, para uma jornada de 40 horas (que muitas vezes não é cumprida) e mesmo assim esses municípios compartilham dos mesmos problemas em relação à falta desse profissional. Será se 20 salários mínimos (mais do que um professor universitário, 10 vezes o salário de um bombeiro carioca, salário muitas vezes maior do que o do Secretário de Saúde ou mesmo do Prefeito que contrata esses médicos) é mesmo um mal salário?


Simplesmente aumentar o salário dos médicos na rede pública não resolveria o problema, pois, como visto, a maioria dos médicos já atua na rede pública, apesar de muitas vezes de maneira precária e irresponsável, principalmente por conta do não cumprimento da sua jornada de trabalho. E mais, o Poder Público não poderia entrar numa disputa, que seria uma espécie de leilão, concorrendo com a rede privada pelos médicos. O que é necessário e urgente em nosso país é uma política clara de fortalecimento da rede pública, paralelamente a políticas de desestímulo ao uso privado da saúde, a fim de reduzir a demanda pelos serviços e consequentemente a demanda pelos médicos nesse setor.


E quais políticas seriam essas? Primeiramente, o Estado Brasileiro precisa, com urgência, parar de estimular o uso privado da saúde. Aqui, duas medidas práticas precisam ser tomadas:

    • Fim do desconto no Imposto de Renda Pessoa Física para os usuários do sistema privado de saúde. Com o sistema atual, o Estado renuncia a uma receita para ajudar as classes média e alta da população a usarem o sistema privado, enquanto os mais pobres têm que sofrer no ainda precário sistema público de saúde.

    • Fim das contribuições públicas a planos de saúde destinados a funcionários públicos ou de empresas estatais. É uma incoerência muito grande o Estado, responsável pela Seguridade Social, destinar recursos públicos para planos privados de saúde e previdência de funcionários.


É claro que a ideia seria aplicar todos esses recursos extras, com aumento da arrecadação do imposto de renda e com o fim do custeio dos planos de saúde de servidores públicos e funcionários de estatais, integralmente no Sistema Único de Saúde.


Para além de medidas como estas duas, o Estado Brasileiro precisa de uma política, a ser implementada a médio e longo prazos, de pesado aumento da carga tributária sobre os atendimentos privados em saúde. O objetivo e o efeito esperado disso seria a diminuição gradual da demanda no serviço privado, principalmente nos convênios, clínicas e consultórios que hoje atendem com baixo valor, tendo como público-alvo a classe média baixa, ou mesmo algumas pessoas que vivem com um salário mínimo ou pouco mais, mas que, desacreditadas do sistema público, optam pelo serviço privado de saúde.


Essa medida fiscal, que tem como objetivo inviabilizar os planos de saúde, hospitais e clínicas particulares que atendem por menores preços, faria com que, apesar de aumentar a demanda no serviço público, aumentasse também a oferta de médicos, já que, com uma menor demanda no serviço privado, estes seriam forçados a atuar na rede pública. E mais uma vez, claro, para a ideia funcionar, esses recursos extras, arrecadados com o aumento de impostos sobre a rede privada de saúde, devem ser integralmente aplicados no SUS, ajudando a garantir assim a melhoria do sistema para atender à demanda vinda da rede privada, bem como ajudando a garantir boa remuneração a todos os profissionais de saúde.


A estratégia seria aplicar essa medida gradativamente, até o ponto em que, somente a pequena elite econômica possa se utilizar da rede privada. Dessa forma poderíamos ter quase que a totalidade dos médicos brasileiros se dedicando exclusivamente ao serviço público, invertendo radicalmente a situação atual e melhorando consideravelmente o atendimento em saúde e a qualidade de vida da grande maioria dos cidadãos brasileiros.


Não é minha intenção aqui tratar a fundo questões tributárias ou de finanças públicas, mas me parece muito claro que com um valor de R$ 35,00 mensais per capita é impossível manter um sistema de saúde funcionando com qualidade. E para que seja aumentado consideravelmente esse valor, certamente se fará necessário, além das estratégias acima citadas, buscar outras fontes de financiamento para a Saúde Pública brasileira. E aqui abre-se a possibilidade de dobrar o tamanho deste artigo, mas para não estender muito, vou apenas citar algumas possíveis medidas, por ora sem maiores justificativas: volta da CPMF, redução da taxa básica de juros, forte controle estatal do lucro gerado pelas riquezas naturais como o petróleo do pré-sal, imposto sobre as grandes fortunas etc.


Apesar de neste artigo ter discorrido apenas sobre o trabalho do médico, quero deixar registrado que o mesmo pensamento eu aplicaria à atuação de outros profissionais de saúde, como dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos etc.


Essa deve ser a prioridade do Estado: atuar fortemente buscando o equilíbrio nas relações sociais e procurando minimizar as distorções causadas pelo poder econômico, sobretudo no que se refere a direitos sociais constitucionais e fundamentais para o desenvolvimento de cada cidadão, como o acesso aos serviços públicos de educação e saúde com qualidade.


Renato Ferreira de Andrade



Referências, principalmente dados numéricos:


  • Tese de Doutorado do Prof. Romulo Maciel Filho, intitulada ESTRATÉGIAS PARA A DISTRIBUIÇÃO E FIXAÇÃO DE MÉDICOS EM SISTEMAS NACIONAIS DE SAÚDE: O CASO BRASILEIRO

  • http://siops.datasus.gov.br/Documentacao/Dados_RIPSA-2008.pdf

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